Horizonte Expandido

Lembro-me de sua indiferente atitude ao percorrer os corredores cheios de cabideiros com incontáveis vestimentas de todas cores, tamanhos e estilos. Um mais pomposo que o outro. Em apenas uma coisa todos combinavam: a etiqueta extravagante era demais para mim. Mesmo que eu apenas as lesse para você, assim como quem oferece ao acaso. Precisavas trocar algumas peças e me dispus a entretê-la em conjunto com sua aia. Seu meigo modo de apontar as peças destoava perante qualquer outra madame que eu já houvesse visto, o que me deixou ligeiramente transtornado. O modo como me senti tão à vontade me preocupou de início, mas assim me deixei levar. Sua colocação, ao final de tudo foi "por mais cavalier servants como você". Foi quando tornei a te ver, que realmente fiquei preocupado. Não pude deixar de te cumprimentar no café e não apenas ousei dizer "Bonjour", como vi escapulindo de meus lábios também as palavras "Tu m'as manqué". Como eu poderia sentir saudades de alguém que nem mesmo conhecia o nome? Mas o clique nela bateu, e me confessou mais tarde que aquela não era a primeira vez que nos encontrávamos no café. Na verdade, nossos caminhos já haviam se cruzado há muito. Quiçá mesmo em outras vidas. E foi assim que nos permitimos conhecer. Com a curiosidade falando mais alto, deixando o acaso de lado e trabalhando com o sentimento que vinha. De conforto, de serenidade, estar fazendo a coisa certa! Embora ela se mostrasse errada, como relatarei, a seguir. Como era de praxe, pedi seu número e ela me presenteou com um cartão de sua loja - ela também possuía sua própria grife, apenas roupas femininas de muito bom gosto. Plumas delicadas dignas de princesas enfeitavam ombros, quando não estivessem de fora. Não tardei para lhe fazer um telefonema. Era ótimo poder ouvir sua voz mais uma vez e que doçura demonstrara ao responder cordialmente meus insuportáveis e desconfiados comentários a respeito de nossos breves encontros. Estive, de início, receoso para tomar qualquer atitude. "Salvo engano, estou certo de que lhe ouvi mencionar um Senhor Bertini, será que não?". Como quem não desse importância alguma à pergunta que eu acabara de lançar, perguntou minha idade. "Vinte e quantos que você tem?" sem entender, acabei respondendo-lhe que "na verdade tenho trinta, e você?" Emendei sem esperar que dessa vez ela me respondesse. "Trinta e um", finalmente ela tornou a falar, "Eu tenho marido, sim. Mas estamos separados há 9 meses, embora no papel continuemos juntos. Já não o amo e não tenho porque me provar de encontros furtivos na calada da noite." Fiquei sem entender, mas não me importei. O fato é que teoricamente o caminho estava livre. Marcamos de almoçarmos juntos, na segunda-feira próxima. Cheguei meia hora mais cedo e fui me ambientando ao local. Na verdade reambiantando; cerca de vinte anos atrás tive uma péssima experiência nesse mesmo restaurante; quando ao terminar de me servir, tropecei no pé de uma cadeira, no final do buffet. Não preciso dizer o que significava uma criança derrubando pratos, espalhando comida por todos os lados, sujando o calçado branco novo com molho sugo - sem contar o vestido, também branco, da donzela que quase terminava sua refeição e que se viu obrigada a sair aos prantos, também encharcada de molho. Além da vergonha e desonra em pleno meio dia no meio da high society, também fiquei sem almoço e de castigo por uma semana. Creio que já era hora de deixar o passado para trás e se permitir novas experiências. Expandir novos horizontes. Feito a ronda do buffet até o toilette duas vezes, temo que meu nervosismo tenha sido notado e decido sentar-me junto a entrada. Não tardou muito para que eu recebesse uma ligação. "Já cheguei, podes vir. Não esqueça que somos primos, tá?" Como assim, primos? Me pergunto internamente sem feição alguma no rosto. Mas lá vem ela... linda, poderosa. Dona de si, e com toda a certeza de um closet de dar inveja a qualquer modelo parisiense. Um breve abraço de cumprimento já me diz tudo o que eu precisava saber; é esse calor que me falta. É desse afeto que eu preciso. "Que bom te ver", ela começa, quando já estamos sentados à mesa, prontos para comer. É apenas nesse momento que ela dirige a palavra a mim. "tenho tantas coisas pra te dizer. Não ligue se a minha filha lhe ignora. Ela tem seus dias..." Referia-se à doce e jovem Isadora. 'Dorinha' como todos a chamavam, era uma menina de 4 anos de um gênio indomável. Apenas sua vó trazia a calma e gentileza dessa princesinha em forma de criança. De fato ela poucas vezes olhou pra mim, embora eu me esforçasse um bocado para agradá-la. Tentativas em vão. Dorinha estava super entretida com seus brócolis e chocolate(?) que quase não notava minha presença, o ser babante ao lado caindo pela sua mãe. "Por onde começar" - ela finalmente continuou, "Sabe. O que eu vou lhe contar agora pode parecer meio estranho e é capaz de julgar-me por louca. Mas preste atenção em tudo que irei lhe dizer e peço que não me interrompa. Ao final sim, terás espaço para opinar. Eu sou meio sensitiva. Embora tenha sido criada como católica, cresci com fortes influências espíritas, de modo que não deve gozar do que está prestes a ouvir. Digo isso pois já sei sobre suas tendências atéias, mas ouça-me! Eu tenho certas habilidades que me permitem lembrar de minhas vidas passadas. Algumas na verdade são de um tempo futuro, comparado a hoje. Me lembro de alguns poucos detalhes, mas sonho sempre com grandes catástrofes pouco antes que elas aconteçam. Vivi quedas de aviões no Brasil e o 11 de setembro. Não pense que eu poderia ter feito algo pois é tudo em cima da hora apenas para que eu prepare conhecidos, nunca pude efetivamente salvar alguém com essas informações. E o que eu queria te dizer com essas informações é que eu já te conheço, Oliver. Nós nos conhecemos de outra vida. Não consigo lhe dizer se é uma vida do passado ou do futuro, mas quando me deu Oi pela segunda vez, pude perceber. Você veio em boa hora. E foi o seu Oi que me acordou. Às vezes eu conheço as pessoas, mas se elas não derem o start, nada acontece. E foi o que você fez. Por isso eu precisava tanto te ver e insisti para que nos víssemos o mais breve possível. Quero te conhecer. Ver quem é essa nem-tão-nova pessoa que foi inserida em minha vida e como posso te fazer feliz." Realmente fiquei boquiaberto com todo o relato da encantadora jovem, mas não quis refutar de início. Decidi que era hora de me deixar levar e ver o que acontecia. Até porque, ela sabia mais de mim do que eu dela. E por não se tratar de alguém tão inexperiente assim, eu não tinha porque me preocupar. Pelo menos por enquanto. Bebemos apenas água durante o almoço. De sobremesa, Dorinha ganhou um ovo de chocolate com surpresa dentro, chegou a me oferecer um pedaço, mas ela o comia com tanto prazer, que não tive coragem. Quis perguntar sobre a história do primo, mas naquele momento já não importava mais. Pareceu-me que ela almoçava frequentemente por ali, mas não compreendi muito bem qual o problema em sermos vistos juntos, nada para além do óbvio, é lógico. Aproximava-se o horário das aulas da pequena e fui convidado a acompanhá-las até a escola. Cheguei até mesmo a ser reconhecido por lá. Uma antiga professora (e quando digo antiga, segue-se os mesmos 25 anos atrás) me viu entrando com a prima e foi logo puxando conversa. "Como vão seus pais?", "O que andas aprontando, já está casado?", "O que houve com tua prima? Ela está muito magra!". Nosso plano de fuga quase vai por água a baixo, mas como que em perfeita sincronia, bastou um olhar discreto entre nós para que os acordos de histórias fizessem sentido e nossa farsa não foi desmascarada. Creio que seja possível até mesmo dizer que, se não entendi errado, a própria ex-professora deu em cima de mim, quando mencionavam meus dotes de finalmente adulto. E para provocar, a Madame.... puxa vida, ainda não lhes contei o nome dela, não é mesmo? xxxx. O nome que me faz borbulhar o estômago e encher os olhos de lágrimas e pesar. A madame xxxx foi capaz de ainda lhe dizer que eu "tinha sorte de ser seu primo, pois se não...." que havia eu de pensar sobre isso? estava amarrado até os dentes. Voltamos para o carro e dessa vez nos dirigíamos para sua casa. Ainda antes disso ficamos dando algumas voltas, conversando e observando as paisagens. Paramos o carro em algum lugar e pusemo-nos a compartilhar ainda mais um do outro. Vontades, desejos e anseios. Tudo mais quanto melhor. Eu a ajudei e ela me salvou. Uma reciprocidade nascia e se permitia de forma tão natural que assustava. Devemos ficar juntos. Me perguntou quais eram meus planos para o futuro. Confessei. Bolamos um novo traçado juntos, onde estaríamos todos juntos, felizes e contentes, casados em outro continente. Me deu vontade de conhecer seus pais e quase mesmo cheguei a amá-os sem nunca os ter visto, tamanha era a beleza e poder descritivos de xxxx. Abraçamo-nos. "Eu sou louca por ti, Oliver", ela começou. "eu precisava te ver hoje. Precisava mesmo. Quisera ter te conhecido 10 anos atrás", segredou-me. Mas não, não teria dado certo. "Sou obrigado discordar, xxxx. Há 10 anos atrás eu não lhe seria de nenhuma utilidade. Nos conhecemos na hora perfeita. No único momento possível", expliquei. "Tudo acontecera do jeito que tinha que acontecer, e de modo incorrigível". Ela me falou exatamente o que eu precisava ouvir. Exatamente o que meu coração ansiava há tanto. E eu era o cavaleiro montado no cavalo branco pronto para o resgate. Nossos lábios então se tocam. Levemente e apenas por um instante. Basta - para que a certeza se firme ainda mais. O coração que batia desesperado de alegria e encantamento, enrubescendo toda a face, agora sentia também um pequeno vazio, ao perceber que havia me afastado dela. Tomados os caminhos diferentes, me dou conta de que passamos seis horas juntos. Seis horas me despindo espiritualmente a ela na tentativa de convencê-la do que ela já sabia. Eu estava perdidamente apaixonado. Seu sorriso, sua face pálida e serena, sua cândida e encantadora voz, os dedos trêmulos, que seguravam os meus.... Tudo nela estava em perfeita sintonia com o momento. E eu já sentia sua falta... Precisava dela tanto quanto precisava de ar pra respirar... x

2 comentários:

Anônimo disse...

Perfeito! Sem mais ❤️

Anônimo disse...

É muito amor! Coisa linda!!!

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