A última manhã

A placa antes do radar nos avisava que o limite permitido era de 40km/h em nossa via. Observei que, acompanhando meu ponteiro e a proximidade do carro à frente que ambos seguíamos a aproximadamente 45km/h. Mas na hora de passarmos pelo sensor, a frenagem o levou a passar a 26km/h. Precisava diminuir tanto assim?
Era só o início de nosso trajeto diário. Diversos kilometros com muitas paradas, conversões e veículos dividindo a estrada. O silêncio de dentro do carro foi quebrado com um discurso que não era nada recente. "Acho que pra minha idade até que eu não estou tão acabada assim", lançou-me ela, como quem diz ao vento, como quem fosse uma frágil e simples dama, rejeitada por todos e uma falha na vida. Mas eu sei que tipo de atenção ela buscava. E também sei o quanto isso me era penoso por explicar - tendo em vista que não fora a primeira vez - e o quanto me irritava ao vê-la com tamanha baixa auto-estima. 
Comecei com um "Pelo amor de deus, Lavínia, pare com isso", talvez eu devesse ter me segurado. Talvez fosse melhor que eu apenas desse corda. "você sabe que você não tá acabada, que todo mundo que te olha acha teu cabelo lindo, que todo mundo repara no seu quadril desenvolto! Você sabe que você é uma pessoa linda e que esses padrões ridículos de beleza que não sei quem que enfia na tua cabeça são tão falhos quanto os próprios autores deles!". Não pude olhar para o lado para ver sua reação porque o trânsito estava delicado, tive que inclusive aumentar a voz devido ao alvoroço das gotas sobre a lataria do carro. A torrencial chuva se fazia agora mais presente, recrutando maior número de carros na rua e cautela de seus motoristas; mas o que eu percebia era que ela não pretendia me responder. Não pude verificar se seus olhos baixaram ou não. Decidi continuar e talvez ali devesse ter parado. 
"Eu não sei porque você ignora tudo o que eu falo, eu não me canso de dizer o quanto você é linda o quanto você é atraente, mas me irrita e talvez seja um problema meu, uma deficiência minha não estar preparado para lidar com alguém como você, que não consegue se ver dessa forma, que simplesmente não enxerga como todos os outros enxergam, pois se há alguém que diz o contrário, certamente é por inveja ou recalque! Eu compreendo a anorexia, mas não é por causa disso que eu saiba lidar com alguém com essa condição. E eu também não quero ser o cara que fica te dizendo que isso é bobagem e que você precisa conversar com alguém! Você não aceita isso, e só nos machucamos ainda mais! Não vou mandar você se tratar, eu já falei isso e não foi produtivo. Mas as minhas respostas padrões não servem mais. Se eu não respondo, você reclama. Se eu sou sincero, você não acredita. Se eu falo empolgado de mais, tentando entrar no seu clima, diz que sou forçado e que estou sendo falso. Não importa o que eu diga, vais achar algo para reclamar e brigar comigo. E talvez não seja culpa sua. Talvez seja seu modo de dizer 'me deixa'. Porque você não consegue dizer de outra forma..." 
Coincidentemente neste momento o pneu atinge um buraco. Fez bem, embora eu não pretendia que isso acontecesse, pois me calou. É impressionante como esses buracos sempre voltam. É essa a nossa Joinville de toda gente. Eles volta e meia tampam os buracos, mas creio que devido ao número grande de caminhões que passam por ali, não há como evitar. Ou quem sabe um asfalto de melhor qualidade? Não faz nem um mês que haviam reformado aquele trecho e novamente já beirava o abismo.
Pedi desculpas por estar falando daquele modo. "Eu não quero brigar, eu só não sei lidar mais com você, com essa situação. Com essa falta de crença sua para com minhas palavras, não consigo viver nessa ilusão de estar fazendo o certo e saber que nada adianta. Que tudo o que faço, faço por mim. 'Tudo o que vem volta', você me diz. Ora e eu não sei? Aguardo ansiosamente pelo retorno do que planto diariamente, mas você, o que pensa? Que as coisas ruins que fizeste para mim vão lhe retornar. Mas não é isso, minha criança! Pra quê ser tão negativa? Por que pensar sempre no pior? Sei muito bem que já deixei de ser um entusiasta há tempos e que possuo meu lado sombrio, mas sejamos mais coniventes com nossa realidade! Não estamos tão mal assim!" 
Quando ela finalmente falou, eu já nem sabia mais do que falava, me encontrava perdido no sentimento de frustração constante, nada daquilo era novidade. Me repito novamente. Tudo isso eu já passei, onde faz o disco destravar? Mudou de assunto de repente. Nada com nada. Até aí, nenhuma novidade. 
Decidi olhar para fora, tentar distrair, fugir daquilo, mas nem deu tempo de procurar algo, algo me encontrou. Um braço entrou pela janela puxando meu cinto, click e ele se soltou. Outro braço me puxou pelo cinto da calça, parecia que eu pesava nada, pois a facilidade que me puxaram pra fora do cara deu a impressão de que quem me puxava não fazia esforço nenhum. Devia ser alguém muito forte, mas quando eu saí do carro, caí como que num rio. Onde estavam os braços que me puxaram? Caí sem boia e ao me virar pra tentar me pendurar na porta, o carro já não estava mais lá, o rio agora corria me levando com a margem a pelo menos 15 metros para os dois lados. Que sonho doido seria esse? Decidi me deixar levar pela correnteza, já que boia não tinha mesmo, nem sequer vontade de nadar pra lugar algum. Mas um som me chamou atenção, em meio ao estrondo de água batendo, um canto parecia surgir mas sem aumentar muito de volume, por baixo das águas. Não podia parecer mais clichê, minha visão era de uma ostra ridículamente gigante que portava uma sereia cantando em italiano. Preciso parar de assistir desenho. 
A verdade é que estou em coma até hoje, fomos atingidos por um caminhão e só eu "sobrevivi". Nunca pude ouvir uma resposta dela, terminei nossa vida reclamando de uma dificuldade que ela tinha que eu simplesmente não era capaz, não era instruído o suficiente para saber lidar. Não era culpa dela. Eu deveria ter ajudado, deveria ter tido mais paciência. Era meu dever. Eu queria me entregar de corpo e alma e deveria ter agido melhor. Esse tempo eu nunca mais vou poder recuperar. Eu deveria saber tolerar mais... deveria... não 
ter
sido eu mesmo...

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