Lei do Retorno

Então eu saio. Triste e derrotado, com um pingo de raiva, mas que logo desaparece - são dois trabalhos. A viagem de volta pra casa é longa e me dá tempo para rever tudo o que fiz de errado, tudo o que eu poderia ter dito mas não o fiz. Me permite avaliar com certa segurança se eu estou insistindo no absurdo, se não seria melhor jogar o carro pra cima do caminhão e acabar com isso de uma vez... Eu já percorri esse trajeto antes. Inúmeras vezes inclusive com esse sentimento no corpo, esse peso na alma. Salvo engano, podemos até mesmo encontrar um vídeo não listado d'um outro momento como esse para uma experiência mais crua... Com quase vinte verstas percorridas, já me encontro naquele estado "numb" em que tudo e quase nada pouco importam, um desvio na estrada me faz descobrir algumas quadras novas para baixo, sem problemas. Voltando a rua principal, com o carro em certa velocidade, noto um senhor com o braço estendido, pedindo carona, igual faz-se na praia, quando é preciso voltar para a cidade. 
Curiosamente, o homem, que beirava os 40 anos, possuía a barba por fazer, com longas suiças e paletó desbotado estava justamente sob o ponto de ônibus urbano. Foi só mais pra frente que consegui frear, mas o homem percebeu que ele havia sido a causa e já veio correndo ao meu encontro. "Entra aí, cara", não tem como ser mais convidativo do que isso. "Oi, tudo bem? Muito obrigado, viu. Já faz mais de uma hora que estou ali e não passou ônibus algum" Ele logo se explica, como que querendo remover suspeitas, que no caso quem deveria ter era ele. Baixei o volume do tecno ensurdecedor momentos antes que ele pudesse alcançar a porta do carro, mas ainda assim era impossível não perceber o odor forte vindo das garrafas de cerveja por debaixo dos bancos. "Ah, não tem problema", digo-lhe, já tentando não criar cerimônias. "Você vai para o Nieva?" quis saber o homem, com certa preocupação em não me tirar do trajeto original. Não tive outra opção a não ser a sinceridade: "Olha, na verdade eu moro daqui a duas quadras, mas uma caminhada me fará melhor, até onde o senhor vai?". Não pretendo me estender aqui, mas a igreja referência que o homem indicou ficava a mais de três verstas sentido sul, que percorri sem problemas. A troca de informações foi pequena, ambos ligeiramente desconfiados um com o outro e por fim, ele me agradeceu de forma mundana, descendo em uma mecânica, a poucos metros da tal igreja.
Já que estava com o dia livre e a cabeça cheia, nesse retorno cruzava com um banco e resolvi sacar um pouco de dinheiro - se é que ainda me restava algo. O inverno havia chegado com tudo e eu sentia estar queimando dinheiro para me esquentar. Quando quase finalizado o processo no caixa eletrônico, um sujeito se aproxima pela direita. Como sempre em situações como essa, o sentido aranha já estava ligado no máximo, então procedo com calma e cautela. Palavras ligeiramente inteligíveis, tratava-se de um estrangeiro pedindo auxílio no envio de dinheiro para outra conta por meio de envelope. "Ora, mas não seja por isso. Será um prazer!'. Agora, como é que se faz isso, mesmo? Ah sim, os dados vão aqui, seu telefone pra contato, quantidade de dinheiro.. beleza, colocamos o dinheiro e agora podemos selar. Segure bem esse envelope, não o vá perder! Bom, a parte mais difícil foi no caixa, mesmo. Achar os botões e colocar os números todos, que diversão. Seria cômico não fosse tão constrangedor pr'um nativo não saber usar seu próprio sistema. Não é a toa que ele precisava de ajuda. Mas no final demos conta. Ele me agradeceu de forma comum, acenando com um tchau, enquanto seguia pra fora da agência. 

Não sei muito o que pensar sobre isso tudo, mas acho que o retorno viria ainda naquela noite, quando eu tinha uma viagem a fazer. Uma viagem que alguns achavam que eu não deveria fazer, enquanto eu me sentia na obrigação, por já ter combinado com meu destino final.

Então, Oliver! Ainda faltam duas horas para o meu translado. O que faremos nesse meio tempo?
Não esperei resposta, já sabíamos e portanto já estávamos a caminho do bar. Alguns shots, conversas aleatórias, cutepies todoaonde e o tempo passa. É preciso entrar no ônibus. E aqui que começa a parte interessante da nossa história. Pra lhes situar, o fato é que eu estava com a roupa do dia, com o suor da depressão e a roupa do ontem. A cara de bêbado, mas com o bafo controlado. Minha poltrona era a de frente para o banheiro, com apenas mais alguém do meu lado. Alguém que por sinal estava muito confortável deitado nas duas poltronas, com uma espécie de lenço fazendo uma cabaninha no nosso espaço, muito provavelmente para proteger de uma forte luz instalada na parede do banheiro. Fui me organizando com a mochila e separando um livro para ler (já antecipando que não dormiria) enquanto ela percebeu movimento e decidiu acordar. "Opa, deixa eu tirar isso aqui" gentilmente exclamou enquanto se levantava de forma vagarosa. O motorista que contava o número de passageiros na hora foi questionado: "É possível apagar essa luz aqui? Fica impossível dormir aqui, bate direto no meu rosto" Sua voz era cândida, com certa maturidade e firmeza. Podia notar sua face rosada e curtos cabelos louros. "Puxa, ainda bem que desligaram essa luz, tava complicado" ela novamente explicou. "Ah, mas que bom que agora está melhor. Você está vindo de longe?" tentei não parecer um bêbado imbecil incoerente, tenho certeza que falhei nessa missão, mas continuemos: parece-me que ela vinha de umas cidades atrás, mas que o objetivo final era o mesmo. Eu teria tempo para me recuperar. Para tirar a suadera sim, mas o cheiro não. Mantinha meus braços fechados para evitar a proliferação o máximo possível, haha Achei estranho que quando ela parava de falar, eu iniciava um assunto, ao cabo de que se eu ficasse quieto, ela iniciaria uma discussão qualquer. Parecia interessada, mas não queria ela dormir também? Precisava fazer algo, mas foi só na nossa segunda parada que desci para me refrescar. Leia-se lavar as axilas, usar enxaguante bucal e perfume. Agora vai.

Quando eu retornei ao nosso lugar, suas pernas estavam por cima do meu banco novamente. Levemente coloquei minha mão em sua perna e perguntei "gostaria de colocar suas pernas por cima de mim?" Acho que ela se assustou, recolheu as pernas rapidamente, talvez pelo sono. Sugeri que recolhêssemos o braço central das poltronas para que pudéssemos nos posicionar melhor. Ela não só acatou, como ao cruzar as pernas em cima da poltrona, pediu-me que estendesse minha perna esquerda por debaixo das suas, de modo que uma segurava outra e eu também poderia ficar mais confortável. Passamos algumas horas assim nos sentindo, quando ela novamente se virou, como de cócoras, virada para a janela. Pensei duas, três vezes, mas tomei coragem me aproximei e perguntei-lhe: "Posso te abraçar". Retornei ao meu lugar, ela imóvel. De repente, volta-se um pouco para mim e pergunta "O quê?", repito a pergunta. "Pode". Morri por dentro. Me posicionei de uma forma totalmente desconfortável, mas que me permitia abraçá-la de dedos entrelaçados junto ao seu peito. Quadril encaixado perfeitamente, uma delícia, mas como ela era menor, somente ela estava bem com relação as poltronas - eu não me importava. O rosto ficou nas costas, esquentando com a respiração sua escápula e por vezes nuca. Lembro de contar três horas nessa posição. Foi quando a luz começou a aparecer. A luz do dia, eu quero dizer. Com essa iluminação natural, era possível contemplar seu rosto ainda mais efetivamente. Carregava os 31 anos, mas não a vida de casada que mencionou. Demorou, mas subindo vagarosamente pelo pescocinho fino, consumamos um ardente beijo na última poltrona do ônibus rodoviário com pernas entrelaçadas sabendo que nunca tornaríamos a nos ver. "Só um beijo de bom dia, viu" - ela não precisava ter dito. Estava bem claro, mas doeu quando percebi que havia sido enganado ao chegar em casa; "Camila Silva, mas não se preocupe. é fácil de achar, caca underline silva." Conta inexistente. Eu caí feito um pato, mas com certeza foi uma viagem memorável. Principalmente por conta das partes que fiquei com preguiça de relatar aqui. Quem sabe um dia eu reveja esse post e preencha as lacunas. Por enquanto fica assim.

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